As origens do cinema
Qualquer marco cronológico que se elega como inaugural para o nascimento do cinema será sempre arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos. Segundo Arlindo Machado, as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por grupos (ou por indivíduos sob sua influência) interessados em promover aspectos sociopolíticos particulares; tornando-se ou história de sua positividade técnica ou a história das teorias científicas da percepção e dos aparelhos destinados a operar a análise/síntese do movimento, cegas entretanto a toda uma acumulação subterrânea, uma vontade milenar de intervir no imaginário.
Assim, o que a sociedade reprimiu na própria história do cinema, ou seja, o mundo dos sonhos, do fantasmagórico, a emergência do imaginário e o que ele tem de excêntrico e desejante, tudo isso, enfim, que constitui o motor mesmo do movimento invisível que conduz ao cinema; fica reprimido na grande maioria dos discursos históricos sobre o cinema.
A história técnica do cinema, ou seja, a história de sua produtividade industrial, pouco tem a oferecer a uma compreensão ampla do nascimento e do desenvolvimento do cinema. As pessoas que contribuíram de alguma forma para o sucesso disso que acabou sendo batizado de "cinematógrafo" eram, em sua maioria, curioso, bricoleurs, ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de um bom negócio. Paradoxalmente, os poucos homens de ciência que por aí se aventuraram caminhavam na direção oposta de sua materialização. Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os futuristas, como se sabe, utilizaram a cronofotografia para cantar as belezas do movimento e da velocidade.
Por outro lado, porém, ilusionistas como Reynaud e Méliès e industriais ansiosos por tirar proveito comercial da "fotografia animada", como Edison e Lumière, estavam mais interessados no estágio da síntese efeturada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar funda na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpretá-lo como "sujeito". Nem é preciso dizer que foi essa a posição que prevaleceu entre o público, esse público inicialmente maravilhado com a simples possiblidade de "duplicação" do mundo visível pela máquina ( o modelo de Lumière) e logo em seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em termos de evasão para o onírico e o desconhecido ( o modelo de Méliès) que durante todo o século XIX fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, Betamiorama, Cyclorama, Cosmorama, Giorama, Typorama etc, nas quais se praticavam projeções de sombras chinesas e até mesmo fotografias, fossem elas animadas ou não. O que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento, mas a possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário.
O que se pode afirmar com certa segurança é que o cinema foi "inventado" na base do método empírico de tentativa e erro, tendo sido necessários ajustes ao longo de pelo menos duas décadas de história, seja regulando a velocidade de projeção ou a quantidade de fotogramas por segundo, ou ainda a quantidade de projeções de cada fotograma na tela, de modo que nem o movimento resultasse "quebrado" aos olhos do espectador, nem o intervalo vazio, perceptível.
O cinema trabalha com uma ilusão de movimento, pois o que ele faz é congelar instantes, mesmo que bastante próximos, já que o movimetno é o que se dá entre esses instantes congelados, e é isso justamente que o cinema não mostra. Assim, a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato, uniforme e impessoal. No limite, o cinema sugere que o movimento poda ser constituído de instantes estáticos. Hoje diríamos que o olho, via de regra, não distingue entre um movimento diretamente percebido e um movimento aparente, artificial ou mecanicamente produzido, mesmo porque não se pode pressupor a artificialidade dos resultados com base na artificialidade dos meios, acrescentando ainda que o cinema nos oferece imediatamente um "imagem-movimento", uma imagem em que os elementos variáveis interferem uns nos outros e cujo recorte temporal congelado pelo obturador é já um "corte móvel".
Qualquer marco cronológico que se elega como inaugural para o nascimento do cinema será sempre arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos. Segundo Arlindo Machado, as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por grupos (ou por indivíduos sob sua influência) interessados em promover aspectos sociopolíticos particulares; tornando-se ou história de sua positividade técnica ou a história das teorias científicas da percepção e dos aparelhos destinados a operar a análise/síntese do movimento, cegas entretanto a toda uma acumulação subterrânea, uma vontade milenar de intervir no imaginário.
Assim, o que a sociedade reprimiu na própria história do cinema, ou seja, o mundo dos sonhos, do fantasmagórico, a emergência do imaginário e o que ele tem de excêntrico e desejante, tudo isso, enfim, que constitui o motor mesmo do movimento invisível que conduz ao cinema; fica reprimido na grande maioria dos discursos históricos sobre o cinema.
A história técnica do cinema, ou seja, a história de sua produtividade industrial, pouco tem a oferecer a uma compreensão ampla do nascimento e do desenvolvimento do cinema. As pessoas que contribuíram de alguma forma para o sucesso disso que acabou sendo batizado de "cinematógrafo" eram, em sua maioria, curioso, bricoleurs, ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de um bom negócio. Paradoxalmente, os poucos homens de ciência que por aí se aventuraram caminhavam na direção oposta de sua materialização. Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os futuristas, como se sabe, utilizaram a cronofotografia para cantar as belezas do movimento e da velocidade.
Por outro lado, porém, ilusionistas como Reynaud e Méliès e industriais ansiosos por tirar proveito comercial da "fotografia animada", como Edison e Lumière, estavam mais interessados no estágio da síntese efeturada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar funda na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpretá-lo como "sujeito". Nem é preciso dizer que foi essa a posição que prevaleceu entre o público, esse público inicialmente maravilhado com a simples possiblidade de "duplicação" do mundo visível pela máquina ( o modelo de Lumière) e logo em seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em termos de evasão para o onírico e o desconhecido ( o modelo de Méliès) que durante todo o século XIX fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, Betamiorama, Cyclorama, Cosmorama, Giorama, Typorama etc, nas quais se praticavam projeções de sombras chinesas e até mesmo fotografias, fossem elas animadas ou não. O que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento, mas a possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário.
O que se pode afirmar com certa segurança é que o cinema foi "inventado" na base do método empírico de tentativa e erro, tendo sido necessários ajustes ao longo de pelo menos duas décadas de história, seja regulando a velocidade de projeção ou a quantidade de fotogramas por segundo, ou ainda a quantidade de projeções de cada fotograma na tela, de modo que nem o movimento resultasse "quebrado" aos olhos do espectador, nem o intervalo vazio, perceptível.
O cinema trabalha com uma ilusão de movimento, pois o que ele faz é congelar instantes, mesmo que bastante próximos, já que o movimetno é o que se dá entre esses instantes congelados, e é isso justamente que o cinema não mostra. Assim, a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato, uniforme e impessoal. No limite, o cinema sugere que o movimento poda ser constituído de instantes estáticos. Hoje diríamos que o olho, via de regra, não distingue entre um movimento diretamente percebido e um movimento aparente, artificial ou mecanicamente produzido, mesmo porque não se pode pressupor a artificialidade dos resultados com base na artificialidade dos meios, acrescentando ainda que o cinema nos oferece imediatamente um "imagem-movimento", uma imagem em que os elementos variáveis interferem uns nos outros e cujo recorte temporal congelado pelo obturador é já um "corte móvel".
A questão levantada por Arlindo Machado, não é decidir se o movimento que o cinema manipula é verdadeiro ou falso para sua compreensão como fenômeno cultural , mas avaliar o que ocorre quando um movimento "natural" é decomposto em instantes sucessivos para ser depois recomposto na sala escura. Que espécie de metamorfose atravessa o material entre esses dois momentos, convertendo a realidade estilhaçada em fantasmas que retornam para atormentar os vivos? Se a percepção do movimento é a síntese que se dá no espírito e não no mecanismo do olho, o cinema deve ser entendido também como um processo psíquico, um dispositivo projetivo que se completa na máquina interior.
Dess perspectiva, não existe uma história do cinema que começa, por exemplo, em 1895, mas uma história das imagens em movimento projetadas em sala escura, que remonta a meados do século XVII, com a generalização dos espetáculos de lanterna mágica. O cinema, tal como o entendemos hoje, não seria senão uma etapa dessa longa história. Os intelectuais do século XIX supunham que o cinema seguiria a fotografia na sua função de "registro" documental, mas foi que aconteceu foi o contrário. O novo sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como território das manhas do imaginário, mantendo-se fiel aos seus ancestrais mágicos pré-industriais.
As primeiras projeções e suas leituras
O cinema que se constitui a partir do cinematógrafo de LeRoy, Edison, Paul, Skladanowsky e dos Lumière, reunia várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações etc, formando um mundo paralelo ao da cultura oficial, que se baseia no princípio do riso e do prazer corporal; é um mundo "invertido", que possibilita permutações constantes entre o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o nobre e o plebeu, o masculino e o feminino. A essas formas de expressão típicas das camadas mais desfavorecidas da população Bakhtin dá o nome de realismo grotesco: elas compreendem um sistema de imagens em que o princípio material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda o espetáculo e em que abundam os gestos e as expressões grosseiras.
O cinema que se constitui a partir do cinematógrafo de LeRoy, Edison, Paul, Skladanowsky e dos Lumière, reunia várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações etc, formando um mundo paralelo ao da cultura oficial, que se baseia no princípio do riso e do prazer corporal; é um mundo "invertido", que possibilita permutações constantes entre o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o nobre e o plebeu, o masculino e o feminino. A essas formas de expressão típicas das camadas mais desfavorecidas da população Bakhtin dá o nome de realismo grotesco: elas compreendem um sistema de imagens em que o princípio material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda o espetáculo e em que abundam os gestos e as expressões grosseiras.
No início, os filmes foram exibidos como curiosidades ou peças de entreato nos intervalos de apresentações ao vivo em circos, feiras ou carroças. Essa forma de difusão permaneceria viva em zonas suburbanas ou rurais, em pequenas cidades do interior e em países economicamente atrasados até os anos 60. Nos grandes centros urbanos dos países industrializados, porém, a exibição de filmes muito cedo se concentrou em casas de espetáculos de variedades, nas quais de podia também comer, beber e dançar, conhecidas como music-halls na Inglaterra, café-concerts na França e vaudevilles ou smoking concerts nos Estados Unidos.
O cinema era então uma das atrações entre as outras tantas oferecidas pelos vaudevilles, mas nunca uma atração exclusiva, nem mesmo a principal. A própria duração dos filmes (de alguns segundos e não mais do que cinco minutos) impedia que se pensasse em sessões exclusivas de cinema nos primeiros anos de cinematógrafo. O preço cobrado pelo ingresso não podia funcionar como mecanismo de seleção do público, pois era ainda muito baixo e coincida de ser o mesmo dos vaudevilles. Nos primeiros dez anos de comércio do cinema não se havia ainda desenvolvido um conjunto de técnicas e procedimentos de linguagem apropriados para a elaboração de uma narrativa visual que fosse suficientemente autônoma a ponto de se poder dispensar a "explicação" de um apresentador.
O cinema era então uma das atrações entre as outras tantas oferecidas pelos vaudevilles, mas nunca uma atração exclusiva, nem mesmo a principal. A própria duração dos filmes (de alguns segundos e não mais do que cinco minutos) impedia que se pensasse em sessões exclusivas de cinema nos primeiros anos de cinematógrafo. O preço cobrado pelo ingresso não podia funcionar como mecanismo de seleção do público, pois era ainda muito baixo e coincida de ser o mesmo dos vaudevilles. Nos primeiros dez anos de comércio do cinema não se havia ainda desenvolvido um conjunto de técnicas e procedimentos de linguagem apropriados para a elaboração de uma narrativa visual que fosse suficientemente autônoma a ponto de se poder dispensar a "explicação" de um apresentador.
O público dessas casas era constituído principalmente pelas camadas proletárias dos cinturões industriais, os imigrantes constituíam o público principal das salas de exibição, pois o desconhecimento da língua inglesa interditava o teatro e outras formas de espetáculos baseadas predominantemente na palavra a essas multidões originárias a maior parte delas da Europa Central. Malgrado constituir um sistema predominantemente proletário, que se distinguia nitidamente das formas "elevadas" de cultura da burguesia e da classe média, esse primeiro cinema não refletia necessariamente as aspirações da camada mais politizada da classe operária do século XIX, a camada organizada em partidos e sindicatos.
No período que vai de 1895 (data das primeiras exibições públicas do cinematógrafo dos Lumière) até meados da primeira década do século seguinte, os filmes que se faziam compreendiam registros dos próprios números de vaudeville, ou então gags de comicidade popular, contos de fadas, pornografia e prestidigitação. Os catálogos dos produtores da época classificavam os filmes produzidos como "paisagens", "notícias", "tomadas de vaudeville", "incidentes", "quadros mágicos", "teasers"(eufemismo para designar a pornografia) etc.
Assim , o cinema dos primórdios ia buscar nos espetáculos populares não apenas inspiração e os modelos de representação, mas até mesmo os seus figurantes: basta lembrar que a equipe que trabalhou no célebre Voyage dans la lune (1902), de Méliès, era constiutída por acróbatas do Folies Bergère, cantoras de vaudeville e dançarinas do Théâtre du Châtelet. E no que diz respeito mais propriamente ao conteúdo, os primeiros filmes não só davam exemplos abundantes de cinismo e perversão, como ainda ridicularizavam a autoridade, invertendo os valores morais. O grande herói do período, reverenciado por um número incontável de pequenos filmes, é o tramp (vagabundo, andarilho), de que Chaplin seria uma espécie de reencarnação, quase 20 anos depois, com seu personagem Carlitos.
Nos music-halls e café-concerts, era bastante comum um gênero de filmes conhecido como tableaux vivants(ou poses plastiques, dependendo do local), que mostrava basicamente mulheres em maiôs colantes ou em trajes sumários, congeladas em gestos provocantes. A reação, entretanto, contra-atacava com todo furor. Uma onda de moralidade levou o governo americano, na virada do século, a proibir a maior parte das películas destinadas aos quinetoscópios.
Nos Estados Unidos, particularmente, onde a guerra ao cinematógrafo chegou a um nível insuportável, os industriais que investiam no setor e a pequena burguesia, que realizava os filmes na condição de fotógrafos, cenógrafos, roteiristas e diretores, sentiram que o cinema precisava mudar. Esses homens todos perceberam rapidamente que a condição necessária para o pleno desenvolvimento comercial do cinema estava na criação de um novo público, um público que incorporasse também a classe média e os segmentos da burguesia. Essa nova platéia não apenas era mais sólida em termos econômicos, podendo portanto suportar um crescimento industrial, como também estava agraciada com um tempo de lazer infinitamente maior do que o dos trabalhadores imigrantes.
A busca de um novo público leva ao desenvolvimento de uma nova linguagem e os realizadores vão buscar no romance e no teatro o modelo capaz de conferir legitimidade ao cinema. Com tal modelo, impõe-se a narrativa e a linearidade no cinema praticado a partir de então. Prova disso é que o diretor David W.Griffith levou à tela nada menos do que um pelotão de escritores como Shakespeare, Dickens, Eliot, Cooper, Henry et, pois era preciso dar legitimidade ao cinema, superar a reação e os preconceitos das classes mais ilustradas, aplacar a ira dos conservadores e moralistas e sobretudo inscrever o cinema no universo das belas-artes.
O primeiro gênero "elevado" a ser tentado pelo cinema foi o chamado film d’art, cujo modelo e rubrica foram dados pela França.. O gênero nasceu em 1908, com a estréia em Paris do primeiro filme da companhia Films d’Art - L’assassinat du duc de Guise. Esse gênero de filme deixava claro que o cinema não tinha ainda conseguido se impor como forma dramática autônoma no sentido erudito do termo, e da eloqüência de outras formas expressivas(sobretudo o teatro), as quais eram apenas transplantadas na sala escura. David W.Griffth, com seus dramas psicológicos de fundo moral, realizados no período em que esteve a serviço da Biograph, apontaria para a direção de maior sucesso.
Conforma avançava a primeira década do século, as fantasias, os delírios, as extravagâncias dos primeiros filmes entram em declínio e são aos poucos substituídos por um outro tipo de espetáculo, mais doméstico, preocupado com a verossimilhança dos eventos, seriamente empenhado em se converter no espelho do mundo para refletir a vida num nível superior de contemplação. O naturalismo começa a se impor então como uma espécie de ideologia da representação, a fábula legitimada pela mimese.
Não se trata de dizer que os vícios e os delírios do cinema do cinema anterior desaparecem para dar lugar à fábula transparente de fundo moral. Eles continuam a freqüentar a tela, porém, agora enquadrados numa perspectiva salvacionista: é preciso representar o mal, já que a mimese implica um compromisso com as aparências, ou como disse o próprio Griffth "é preciso mostrar a face escura do pecado para fazer brilhar a face iluminada da virtude". O cinema trabalha com um componente erótico e perverso em relação ao qual mesmo o sermão protestante acaba funcionando como um estímulo, embora pelo avesso. Há um pecado original que atrela o cinema ao prazer do olhar, ao voyerismo sádico; para redimir-se desse pecado, a geração de Griffth opera a ascese, transforma a encenação do mal em escola da temperança.
Bibliografia recomendada:
MACHADO, Arlindo – Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas/SP:Papirus, 1997.
SABADIN, Celso – Vocês ainda não ouviram nada. A barulhenta história do
cinema mudo.São Paulo: Lemos Editorial, 1997.
COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995.
XAVIER, Ismail – O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência. Paz e Terra: RJ, 1977.
No período que vai de 1895 (data das primeiras exibições públicas do cinematógrafo dos Lumière) até meados da primeira década do século seguinte, os filmes que se faziam compreendiam registros dos próprios números de vaudeville, ou então gags de comicidade popular, contos de fadas, pornografia e prestidigitação. Os catálogos dos produtores da época classificavam os filmes produzidos como "paisagens", "notícias", "tomadas de vaudeville", "incidentes", "quadros mágicos", "teasers"(eufemismo para designar a pornografia) etc.
Assim , o cinema dos primórdios ia buscar nos espetáculos populares não apenas inspiração e os modelos de representação, mas até mesmo os seus figurantes: basta lembrar que a equipe que trabalhou no célebre Voyage dans la lune (1902), de Méliès, era constiutída por acróbatas do Folies Bergère, cantoras de vaudeville e dançarinas do Théâtre du Châtelet. E no que diz respeito mais propriamente ao conteúdo, os primeiros filmes não só davam exemplos abundantes de cinismo e perversão, como ainda ridicularizavam a autoridade, invertendo os valores morais. O grande herói do período, reverenciado por um número incontável de pequenos filmes, é o tramp (vagabundo, andarilho), de que Chaplin seria uma espécie de reencarnação, quase 20 anos depois, com seu personagem Carlitos.
Nos music-halls e café-concerts, era bastante comum um gênero de filmes conhecido como tableaux vivants(ou poses plastiques, dependendo do local), que mostrava basicamente mulheres em maiôs colantes ou em trajes sumários, congeladas em gestos provocantes. A reação, entretanto, contra-atacava com todo furor. Uma onda de moralidade levou o governo americano, na virada do século, a proibir a maior parte das películas destinadas aos quinetoscópios.
Nos Estados Unidos, particularmente, onde a guerra ao cinematógrafo chegou a um nível insuportável, os industriais que investiam no setor e a pequena burguesia, que realizava os filmes na condição de fotógrafos, cenógrafos, roteiristas e diretores, sentiram que o cinema precisava mudar. Esses homens todos perceberam rapidamente que a condição necessária para o pleno desenvolvimento comercial do cinema estava na criação de um novo público, um público que incorporasse também a classe média e os segmentos da burguesia. Essa nova platéia não apenas era mais sólida em termos econômicos, podendo portanto suportar um crescimento industrial, como também estava agraciada com um tempo de lazer infinitamente maior do que o dos trabalhadores imigrantes.
A busca de um novo público leva ao desenvolvimento de uma nova linguagem e os realizadores vão buscar no romance e no teatro o modelo capaz de conferir legitimidade ao cinema. Com tal modelo, impõe-se a narrativa e a linearidade no cinema praticado a partir de então. Prova disso é que o diretor David W.Griffith levou à tela nada menos do que um pelotão de escritores como Shakespeare, Dickens, Eliot, Cooper, Henry et, pois era preciso dar legitimidade ao cinema, superar a reação e os preconceitos das classes mais ilustradas, aplacar a ira dos conservadores e moralistas e sobretudo inscrever o cinema no universo das belas-artes.
O primeiro gênero "elevado" a ser tentado pelo cinema foi o chamado film d’art, cujo modelo e rubrica foram dados pela França.. O gênero nasceu em 1908, com a estréia em Paris do primeiro filme da companhia Films d’Art - L’assassinat du duc de Guise. Esse gênero de filme deixava claro que o cinema não tinha ainda conseguido se impor como forma dramática autônoma no sentido erudito do termo, e da eloqüência de outras formas expressivas(sobretudo o teatro), as quais eram apenas transplantadas na sala escura. David W.Griffth, com seus dramas psicológicos de fundo moral, realizados no período em que esteve a serviço da Biograph, apontaria para a direção de maior sucesso.
Conforma avançava a primeira década do século, as fantasias, os delírios, as extravagâncias dos primeiros filmes entram em declínio e são aos poucos substituídos por um outro tipo de espetáculo, mais doméstico, preocupado com a verossimilhança dos eventos, seriamente empenhado em se converter no espelho do mundo para refletir a vida num nível superior de contemplação. O naturalismo começa a se impor então como uma espécie de ideologia da representação, a fábula legitimada pela mimese.
Não se trata de dizer que os vícios e os delírios do cinema do cinema anterior desaparecem para dar lugar à fábula transparente de fundo moral. Eles continuam a freqüentar a tela, porém, agora enquadrados numa perspectiva salvacionista: é preciso representar o mal, já que a mimese implica um compromisso com as aparências, ou como disse o próprio Griffth "é preciso mostrar a face escura do pecado para fazer brilhar a face iluminada da virtude". O cinema trabalha com um componente erótico e perverso em relação ao qual mesmo o sermão protestante acaba funcionando como um estímulo, embora pelo avesso. Há um pecado original que atrela o cinema ao prazer do olhar, ao voyerismo sádico; para redimir-se desse pecado, a geração de Griffth opera a ascese, transforma a encenação do mal em escola da temperança.
Bibliografia recomendada:
MACHADO, Arlindo – Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas/SP:Papirus, 1997.
SABADIN, Celso – Vocês ainda não ouviram nada. A barulhenta história do
cinema mudo.São Paulo: Lemos Editorial, 1997.
COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995.
XAVIER, Ismail – O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência. Paz e Terra: RJ, 1977.
* Este texto foi baseado no livro de Arlindo Machado – Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas/SP: Papirus, 1997.
** Carla Miucci Ferraresi é produtora e pesquisadora de documentários; é bacharel em História e Ciências Sociais, e doutoranda em História Social (FFLCH/USP).
** Carla Miucci Ferraresi é produtora e pesquisadora de documentários; é bacharel em História e Ciências Sociais, e doutoranda em História Social (FFLCH/USP).
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